terça-feira, 30 de novembro de 2010

O não e o não e o amigo secreto

O não e o não

Porque dentro de três letras tão corriqueiras, cabe o infinito. Não: o infinito cabe fora delas; dentro fica o que, feito muro, o não limita. E muro pode ser pra impedir, pra cercar, proteger; separar desconhecido do conhecido; pra contornar, delimitar. Às vezes é o muro que define onde a casa começa. A casa começa no não.

E o não se bifurca, possibilidades do impossível: quando o mundo se inicia naquele infinito, o não aparece de dois jeitos.

O primeiro: não, porque o mundo pode te machucar. Não pode colocar o dedo na tomada. Não pode atravessar a rua sem olhar. Não pode pular do trocador. Anunciando a impotência antes que ela se faça dor.

O segundo: não, porque você pode machucar o mundo. Não pode quebrar a coleção de CDs do papai. Não pode rasgar as anotações da mamãe. Não pode arremessar a louça. Anunciando a potência pra que ela se reconheça.

É no não que se começa a poder. É no não que se percebe pela primeira vez a própria força.


(Mais uma vez, Guto, obrigada.)

***

Benjamín agradece em notas musicais o lindo presente do amiguinho secreto Gabriel, do Eu e ele!

Benja e seu novo instrumento musical, com a mais que querida Le.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Paul, Benja; Benja, Paul!


Benjamín,

Há alguns já muitos anos, quando a mamãe era ainda uma menina, ela descobriu um CD na casa do vô Tuta e da vó Clá, onde ela morava. Naquela época, o vô Tuta e a vó Clá viviam numa mesma casa porque ainda não tinham escolhido viver suas vidas cada um do seu jeito, e as pessoas estavam começando a escutar CDs, que são umas rodelas brilhantes que vêm numa capa de plástico e que a gente coloca num aparelho específico pra escutar música. Aqui na sala da nossa casa tem um monte de CDs, mas quando você estiver maior eu não sei se eles ainda vão existir ou se você vai se lembrar deles, mesmo adorando, hoje em dia, morder aquelas coloridas capas de plástico. Mas como a mamãe ia dizendo, ainda menina ela descobriu um CD que foi o primeiro encantamento musical da sua vida. Past Masters volume II, era o nome dele, e a mamãe deitava no sofá ao lado do único toca CDs da casa e ouvia, ouvia, ouvia deliciada, uma vez, outra vez, e outra, até adormecer. Aquelas músicas eram tão perfeitas que a mamãe se surpreendeu quando descobriu que havia outros discos dos mesmos caras, e tão incríveis quanto. Os discos vieram antes dos CDs, Benja, e quando você for maior, esses sim você só deve encontrar em museu. Mas escutando disco, ou CD ou até arquivo a mamãe se surpreendeu com eles ainda um monte de vezes ao longo das suas épocas, e continuou surpresa quando percebeu que eles tinham mesmo músicas pra todo tipo de momento da vida de uma pessoa, como uma bíblia musical espalhada no tempo através de acordes musicais, ritmo e palavras. Bíblia, Benja, no sentido de algo que contém significados muito importantes e que podem eternamente se revelar, esconder e renovar (como aquele livro que a mamãe abraçou ao acabar de ler chamado Grande Sertão: Veredas). Então a juventude toda da mamãe foi marcada por diferentes músicas daqueles quatro caras, e sempre que ela escuta algumas delas, se emociona e às vezes até chora de saudade. Porque a mamãe tem hoje 29 anos, Benja, mas uma nostalgia de quem tivesse 83. E também porque sabe que aquelas músicas foram importantes pra muita gente que veio antes dela, como o vô Tuta, a vó Clá e todos os amigos que eles tinham antes. E sabe que é cada vez mais difícil as coisas durarem, principalmente a ponto de atravessar gerações, e quando isso acontece, existe a chance da coisa ser muito, muito boa.
Hoje a mamãe passou o dia todo muito cansada, você deve ter percebido, mas foi por um motivo que valeu a pena. É que ontem ela dormiu tarde e muito alegre. Ontem, ela teve o privilégio de escutar um daqueles quatro caras tocando e cantando na frente dela (mesmo que pequenininho, lá longe), e ela gritou, cantou, dançou, pulou e se emocionou um montão. E enquanto a mamãe nascia, crescia e ia se emocionando com as músicas daqueles quatro, o tempo passava praquele ali de ontem também, e então ali no palco quem estava era já um senhor. Sir Paul. Pros outros três o tempo também passou; pra dois deles o tempo passou tanto que terminou e eles morreram. Isso acontece com todo mundo um dia, meu Benja, e talvez seja por isso que muita gente tentava filmar ou fotografar aquele senhor cantando ao invés de simplesmente curtir ele ali, porque é muito difícil, filho, aceitar que a vida são só esses instantes que acabam, irrecuperáveis e irreprodutíveis, como que anunciando diariamente a morte futura de cada um. E é nesses instantezinhos que a gente tem a oportunidade de dobrar o tempo e se encontrar com outros destinos que a gente sonhava noutros dias, como na música que sir Paul cantava praquele mar de gente, que cantava e pulava junto, quando a mamãe, também cantando e pulando, voltou pro sofá ao lado do toca CDs onde ela descobriu, anos antes, aquela mesma melodia, e reviu através de um arrepio cada momento que separava o sofá que não existe mais do pulo que ela pulava agora. E a mamãe achou um barato, do lado dela, cantando de cor todas as músicas, uns meninos com pouco mais que a idade dela quando descobriu aquele CD, e imaginou que barato maior ainda pros ainda mais velhos que viam a mamãe, os meninos e toda aquela gente cantando de cor as músicas que trilharam a juventude deles. Como eu disse, Benja, pra uma coisa durar assim e atravessar gerações, modas e tecnologias, alguma coisa de muito especial ela tem. E tinha ainda lá ontem à noite, mesmo a mamãe não conseguindo evitar de pensar que difícil deve ser a vida do Sir Paul, que em nome da juventude de todo aquele mar de gente teve que ficar aprisionado na sua própria. Mas isso não é problema, Benja, porque in the end the love you take is equal to the love you makeE aí a mamãe entende duas coisas: o amor que se recebe é igual, como numa equação, ao que se faz; e o amor que se recebe é, ele mesmo, o que se dá.
Tá vendo, meu Benjamín, meu amor?

segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Como?

Cortando a unhazinha minúscula do Benjamín – nunca se viu nada tão pequeno no universo, e a relatividade se reafirma com o tamanho comparativamente gigante do cortador – desponta um filete de sangue acompanhado de choro agudo doído. E minha maior surpresa, neste momento, é não encontrar em mim dor física que justifique tal pranto.

Como?

Como?, eu me pergunto a cada choro de dor, a dor dele não dói em mim?

Porque a dor que dói em mim é outra: acontece no peito, em aperto, pela dor que eu sei que ele sente; e pela dor que eu sei que ele sente não ter me escolhido, ali, como quem dói.

Ser outra que não ele.

E ele, desde já, desde antes, quando se iniciou, ter se iniciado como aquele que tem que doer sozinho.

(Será essa a forma inaugural da eterna culpa da mãe?)

Por mais que eu beije, e chore, e abrace, e doa.

terça-feira, 16 de novembro de 2010

A eternidade desdentada

Estávamos os três no parque uma tarde dessas quando a luz que chegava até nós, toda enzebrada das plantas que atravessava, iluminou não só o que acontecia ali, mas também outros tempos.

Era uma tarde fria, e os sorrisos agasalhados do Benjamín, sentadinho no chão, rodeado de árvores, me trouxeram abrupta uma sensação que mesclava conforto e desconforto. O primeiro, por vê-lo ali, perto de nós, todos os três brincando juntos, numa alegria que só poderia mesmo acontecer à tarde. E o segundo, um desconforto almofadado, dor que aconchega: uma saudade de outros tempos. Porque seu sorriso banguela me arremessou numa foto desdentada pendurada há anos no porta-retrato; meu próprio sorriso de bebê era quem sorria o mesmo sorriso do meu filho, tão potente na sua singeleza que abre até os portais do tempo.

Naquele instante, eu não me via apenas mãe de Benjamín; eu me devia aquele momento à criança que fui, cruzando gerações e inventando eternidades. Ele continuava sorrindo, trazendo momento a momento o que fui no feliz que sua boca anunciava.

E, continuando a sorrir, singelamente trazia, também, seu adulto futuro. Trazia no aberto da boca o sorriso de seu filho, meu neto, através do olhar que também o olhará sorrindo, sorrindo. E assim nos encontraríamos todos, os que somos, os que fomos e os que seremos, no repetir-se dum sorriso de criança, capaz de condensar tempos num sempre eterno agora.

Eu chorava sem acordes na tarde fria, sem lágrimas, atônita diante da disposição generosa daquele milagre, e sorria ainda o mesmo sorriso de 29 anos atrás. Que se repetirá quando eu for novamente desdentada, exibindo nas gengivas banguelas todos os sorrisos de uma vida.

***

(Devo a percepção deste milagre ao tempo de agora, fins de ano, que sempre me põem num molhado de viver, e a outro adorável intruso que, anunciado ali, se trouxe também pra cá.)

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Cada coisa em seu (novo) lugar

Roupa do Benjamín no chão, no exato lugar onde caiu ao despencar do trocador;
Ralf (panterinha azul) atrás do berço, no exato lugar onde pousou após arremesso benjaminiano;
Almofadas espalhadas pelo chão da sala, ad eternum;
Espremedor de fruta em cima da pia, forever;
Leite e seus derivados digestivos salpicados pelo chão em geral;
Celular dentro da bolsa do Benjamín, dentro do quarto dele, com ele dormindo (que ninguém resolva telefonar nas próximas horas);
Fraldinhas, brinquedinhos, casaquinhos, inhosinhos escondidos em cada fresta possível do quarto de mamãe e papai;
Letras coloridas aleatoriamente localizadas no recinto em cuja porta se anuncia: B-N-J-A-N;
Papinha dentro do nariz do lindo rebento.

E o caos, mamãe, está só começando.

terça-feira, 9 de novembro de 2010

Ela

Entrando no carro, se flagrou passeando com o pensamento em obscenidades. Primeiro assustada e um pouco envergonhada, depois até com boas vindas a visitante agora tão raro. O desejo. Obscenidades? Não, isso seria muito. Talvez, o desejo de desejar.

Ia a uma festa. Não se recorda de quando fora à última. Agora, seu filho dorme, e sua mãe ficou com a tarefa de cuidá-lo.

Cada gesto do vestir-se já se ensaiava em significados. A roupa que não serve, a roupa que usou naquela remota vez, o cabelo que quer arrumar diferente. Assim? Assim? Não. Ela, que era antes bonita. Que se sentia ferver de vontades, tantas e alheias. E, diante do espelho, testando penteados, recebeu bem leve o calor dos desejos em forma de lembrança. Que passeou, e se apaixonou em vontade. Lembrada, ainda.

Saudades, ela disse. E sentiu, escolhendo que música escutaria no caminho.

No caminho, percorreu com mais nome àquilo que a visitava. Ao som de músicas de antes, pensou em quem poderia estar na festa. Já com nostalgia. Pretendendo interesse que já faltava no impossível de um futuro. E a música: dane-se. Seja o que for. Vontade, vontade de se apaixonar.

Chegando à festa, pessoas conhecidas. Sorrisos necessários que queria sinceros. Não avistava o marido, que estaria lá.

Andou pelos cantos. Pra falar, espremia os dias em busca de assuntos que pudessem interessar. Como você tá?, bem, filho, sono, filho. Você viu meu marido? Tava aqui agora, acabou de sair. De novo. De novo.

A essas alturas, o desejo aquele todo tinha se convertido em um: encontrá-lo na festa. Conversava com o rabicho do olho procurando. Perguntava outra vez. Nossa, mas vocês num se encontraram? Ele tava aqui agorinha!

Até que se trombaram. Num alívio de água matando sede, se abraçaram. Abraço longo, beijado. Como de há tempos.

Passaram a festa deliciosamente juntos.

Ela voltou mais cedo. Na volta, dirigia em silêncio. Sentiu vazia a cama.

Entendia: o apaixonar-se de que estava prestes tinha achado o melhor rumo de todos. O único possível. O marido.



quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Importâncias

Quando ele, em colo alheio, se joga em direção a mim, ou ao me ver estende as mãozinhas pedindo colo, todos os minutos da minha vida se reorganizam num sentido que transforma aquele cada instante no sumo da existência, em chão vivo onde tudo o mais pode agora, enfim, acontecer.

***

Sítio:
Sentar na grama, gargalhar ao ver cavalos pastando pela primeira vez, olhar pro longe, lamber o chão.
Algumas das delícias do feriado...


E pra que mais serviriam os dreads, mesmo...?




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