sexta-feira, 29 de outubro de 2010

Um dia sem ele

Pulou da cama. É hoje, pensou com medo. O filho ainda não havia acordado. Postou-se na beirada do berço pra acompanhar seu despertar. Ele o fez como todos os dias, se espreguiçando, abrindo os olhinhos primeiro com dificuldade, depois acompanhado dum sorriso sonolento e feliz. Ele não sabe de nada, ela pensou com dor.

Havia no ar um quê de fim de ano, de vida prestes a se dar férias, mas o que o dia prometia estava longe disso. A não ser pelo avião. O vôo saía na hora do almoço, e ela queria tocar no filho cada instante possível como se pudesse guardar um pouco pra depois.

E a manhã passou como se tampouco soubesse de nada. Rápida e insensível. A avó e a babá chegaram. Ela se arrumou, e foi aí que se deu conta de que estava nervosa também pela apresentação. Conferiu se na bolsa estava tudo o que precisava. Parecia que sim.

Pegou o filho no colo. Beijou, beijou, beijou mais, apertou-o contra o peito. A essas alturas já achava graça que ele continuasse sorrindo mesmo que o rosto da mãe estivesse alagado de lágrimas. Entregou-o para a avó e saiu.

Como ele vai suportar ficar longe de mim?, pensava ainda chorando. Seria apenas um dia, e se consolava com a velocidade de todos os dias. No caminho para o aeroporto, permitiu-se ouvir música. Já não chorava, e não pode deixar de notar, escondida por entre as melodias, despontando nas pausas dos compassos, a culpa por se sentir bem. Ali, olhando a paisagem correr na janela, ao som daquela batida feliz, se encontrava com a nostalgia do que há pouco tempo ainda não era antigo. Viajaria só. Ida e volta no mesmo dia, mas isso a música ignorava.

Aeroporto. Inevitável imaginar o que imaginavam os que a viam. Nunca suspeitariam quem era ou porque estava viajando. Ela mesma tinha dificuldade em fazer coincidir a imaginação de si com a própria vida.

No avião, aproveitou para estudar de novo o que iria apresentar. No relógio, hora do leite do filho. Tentou dormir.

A viagem era rápida. Esperavam por ela no desembarque. Chegou ao local do evento e sentiu o frio das mãos. Faltava pouco. Assistiu à apresentação que antecedia a sua. O suor frio aumentava. Estou despreparada, percebeu. Que raios estou fazendo aqui?, acrescentou.

Pensou no filho. Pensou há quantas horas não se viam. Pensou que o resultado do cálculo significava o recorde de tempo longe um do outro. Pensou que ele tomou leite NAN. E que seu peito formigava de leite descendo. Pensou que vergonha seria se vazasse leite no meio de sua apresentação. Pensou que teria que apresentar muito bem pra ter valido a pena ficar aquele dia longe dele.

Não pensou mais porque chamaram seu nome. Andou até à frente da plateia, pegou o microfone com a mão suada. Apresentou-se. Só não disse mãe de Benjamin, que está em casa tomando leite NAN enquanto meus peitos vazam.

Falou. Falou. Falou.

Terminou.

Despediu-se de algumas pessoas, foi até o saguão onde o carro a esperaria. Foi levada de volta ao aeroporto. Espera interminável. Anoitecia.

O filho estaria tomando banho. Ela já ficava inquieta com os minutos que, agora, pareciam encalhar. Subiu no avião. Não podia dormir.

A viagem de volta demorou séculos. Sentiu enjôo, sentiu pressa, sentiu saudade. Sua expectativa não cabia naquela poltrona. Irritou-se com a conversa do casal ao lado.

Chegou, enfim, em sua cidade. E as demoras que se seguiram e retardavam sua chegada em casa beiravam o insuportável. Ele está dormindo, o marido contou por telefone. Como?, ela se perguntou. Pediu pressa ao taxista.

Entrou em sua casa silenciosa. Beijou o marido, perguntou do dia. Foi tudo bem. Mas ele ficou bem? Ficou. Mesmo? Sim. Mesmo sem leite do peito? Sim. Ela sentiu doer o peito ingurgitado de leite.

E adentrou o quarto do filho. E pegou-o dormindo no colo. E o abraçou. Sentiu seu cheiro. Casa.

Carregou-o até a cadeira onde dava de mamar. E suspirou de alívio quando ele grudou os lábios no seu peito e, com força, começou a sugar.


quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Silêncio

Gostaria de encontrar palavras que pudessem tocar na dor de uma mãe que perde um filho. Mas elas não existem e nunca existirão. Estas, só remetem às que não há. Tentando dizer, em vão, o único silêncio possível diante do trágico.

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sem anos de perdão

Misterioso, o escrever. Sempre. Começa de uma ideia brotada e segue caminhos imprevisíveis, enviesados, tortos. Querendo se chegar ali, de repente as palavras resolvem tomar rumos outros e nos levam pra lá, fluindo num formar-se de linhas como se puxadas de um carretel. Um carretel invisível e incontrolável. Quem nunca viveu o perder um texto e o tentar reescrevê-lo, sendo surpreendido por um resultado completamente diferente daquele que tinha sido escrito instantes antes? Não, as palavras não são nossas. As palavras são delas mesmas. E por isso não podem ser roubadas.

Tenho a impressão, quando escrevo, que são as palavras que me escolhem, e não o contrário. E isso não é uma espera passiva. É um gesto dificílimo de recolhimento. Em me recolhendo, recolho as palavras que se oferecem a mim. E o texto sai, tecido. Como ele quis. Quando ele quis, porque às vezes não sai. Tenho guardados aqui no computador alguns impublicáveis como exemplo. Mas não mostro por serem mesmo impublicáveis.

E aquela ideia brotada onde na maioria das vezes tudo começa, ela tem vários jeitos de brotar. Às vezes vem do nada, às vezes de uma cena. De uma lembrança. Um mistério. Às vezes, de outro texto. E isso não tem nada a ver com plágio. Isso pode se chamar inspiração, ou intertextualidade, ou qualquer outro nome que caiba. E não retira nada do texto que foi fonte, pelo contrário. Acrescenta outros sentidos, partindo daquilo que já estava pronto. Aí, pode até acontecer um prolongamento tal que dê vida nova ao que já estava inerte.

Mas quem copia não está fazendo nada disso. Seria mais ou menos como arrancar uma flor da terra: ela não pode ser replantada num lugar que não a sabe receber. Ela morre sem o que é sua raiz. E raiz, em se tratando das palavras escritas, é o fazer parte do texto, do contexto, é ter existência por ter sentido. É o ter sido recolhida.

Lembrei agora um assalto que sofri. Assalto de verdade, com arma e tudo. Um objeto foi roubado, dentre as coisas que foram roubadas. Ele valia pouco dinheiro, mas tinha outro valor muito grande. Tinha sido um presente meu pro Demis. Eu fiquei imaginando o objeto na vida das mãos que o levaram, e ele não tinha nenhum sentido possível nelas. A pessoa que o tinha agora não podia chegar nem perto do tanto de significado que aquilo tinha pra gente. Um desperdício do objeto.

Assim acontece com textos roubados. Roubados, e não apropriados, tornados próprios. São coisas muito diferentes. O texto roubado morre no novo lugar, não encaixa, não enraíza. O texto (ou ideia) apropriado ganha outras ramificações, vive noutras paragens, se multiplica pelos olhos que o colheram. Na história da literatura houve muitos textos apropriados. Aliás, a literatura é a história da conversa entre muitos textos. E quando essa conversa acontece, ela pode vir escondida por trás das palavras. Não precisa citar nem nada, isso até tiraria a graça de uma reverência silenciosa que não se mostraria a um leitor menos atento.

No caso das escritas internáuticas, a coisa é um pouco diferente. Porque o leitor dificilmente tem como saber do outro lado da conversa, já que aqui se escreve pequeno, e aos milhões. E reverência sem considerar o que é reverenciado se aproxima da inveja.

O jeito internético de se manter na reverência é dizer de onde veio. Exatamente como o intérprete de uma música diz quem a fez, para então poder interpretar como quem voa. Vide Elis Regina, que não roubou nada de ninguém e deu a muita música vida que nem os autores imaginavam pudesse sair do que eles tinham feito. Tivesse ela roubado, não teria tido chão de onde tomar impulso para o voo.

Dizer de onde veio, além de preservar o que é possível da conversa que dá vida aos textos, é uma maneira de trazer junto a história. Começando pela história de quem está escrevendo, que conta ter passado por ali onde bebeu da água que derrama agora em voz própria. E passando pela história do que foi trazido nessa visita – história-raiz, que, contextualizando, deixa que o texto enxertado viva.

Ladrões de palavras. As palavras, quando palavras, se roubadas desintegram. Vocês se desfazem junto delas. E ficam com as mãos cheias de impossibilidade: de dar sua voz ao mundo; de colher junto; ou de silenciar.

Ladrão que rouba palavra rouba o impossível. As palavras não se roubam. Elas se dão. E por isso ladrão que rouba palavra fica sem anos de perdão.

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Onde eu possa plantar meus amigos, meus discos, meus livros... e meus filhos!

Eu quero uma casa no campo. Em que caibam Demis, Benja, eu e nossos sonhos a três (porque o adeus aos sonhos se despede é dos sonhos solitários). Que receba todos os amigos com o vagar de uma tarde infinita. Que acolha conversas, silêncios e os olhares abertos. Onde os filmes e livros possam ser vistos e revistos e revistos até fazerem sentido. Onde a música seja às vezes quem escuta e às vezes quem fala. Onde a varanda seja o campo, ou o mar, ou a calçada. Onde o olhar possa demorar. Onde o crescer dos cabelos e das unhas não sejam tanta surpresa, como se eu pudesse assistir ao que não se deixa ver.
Amém.

***

Casa no campo, na voz da Elis, autoria de Zé Rodrix, inspirou a reza. Bom dizer de onde vêm as coisas, já que estamos prestes a viver um dia de blogagem coletiva pra que as idéias e vozes não sejam roubadas. Dia 25. Pra saber mais, aqui e aqui.

***

Sabe o que eu estranho? Que os blogs tenham uma lógica do fim pro começo. As pessoas vêm, lêem o último post, às vezes passeiam. Mas o que foi escrito antes corre o risco de ficar perdido, se não houver link ou boa vontade (já me peguei até querendo escrever um post pro anterior “ir embora”). Por isso os arquivos vão dos mais recentes pros mais antigos. O contrário de um livro.

Isso sou eu me havendo com essa coisa de blog. Um dia pode ser que eu me acostume. Ou entenda.

domingo, 17 de outubro de 2010

De sonhos, árvores e limites

Ser jovem significa poder ser qualquer coisa que caiba dentro de continuar sendo si mesmo. Ser o ponto de onde divergem infinitos caminhos e ter o pé apontado pra qualquer direção. Poder sonhar ser isso, aquilo outro, apoiando o queixo na mesma janela diária, de onde o mundo acena sempre como convite. E a recusa, por não se saber definitiva, nem tem gosto de recusa. Assim, eu me sonhava, nem tanto tempo atrás, escritora, aventureira, desbravadora, garçonete, andarilha, editora, professora. Morando na praia, na montanha, num navio, num país de língua azul, numa casinha ao som de cachoeira. E tantas outras intimidades.

Eu não tinha percebido antes, talvez por isso o momento tenha se feito de assombro tão violento. E eu não podia supor que a descoberta se daria justamente ali, olhando as fotos de uma amiga na internet. Uma amiga que está trabalhando no Quênia. A cada foto, admiração e dor. Dor?, eu me surpreendia. E a resposta da dor era crescer até sufocar. Um tipo de dor até então desconhecido, que de início eu tentei ignorar, não tendo achado onde enfiar tamanho absurdo. Mas quanto mais eu abafava, mais sem ar ficava. Até que, assustada com meu próprio desespero, saí da frente do computador e fui conversar com minhas lágrimas. Perguntar a elas, no sozinho de um quarto escuro, de onde vinham, pra quê molhavam meu rosto, o que pretendiam.

Elas não me responderam.

E Benjamín dormia no quarto ao lado.

Mas o seco daquelas lágrimas que secaram de silêncio era rastro. Que segui pra conseguir dizer: eu não posso mais fazer o que eu quiser.

Não.

Eu não posso mais ser qualquer coisa que eu sonhe ser. Não posso morar no Quênia, não posso andar sem rumo. Não posso sair pra não voltar, não posso não ter dinheiro. Não posso me inventar de avessos e nem rodar o mundo sem destino nem porquê.

Não posso mais ser sozinha.

Ser mãe abre, mas limita. E isso era a dor. Que foi embora, porque dor dói mesmo é quando ainda não tem nome.

Ter um filho define. Contorna. Por isso minhas companheiras inquietações que transbordavam fizeram malas e partiram. Me deixaram serena com o que se fez minha família.

Ser mãe é um mergulho maravilhoso no íntimo que os dias presenteiam. É o mágico no comum. O milagre: simples.

Mas há que se despedir de alguns sonhos como possíveis. E se despedir de qualquer sonho é também triste, porque traz em forma de adeus tudo o que nunca foi. Mesmo que o caminho para onde os pés agora apontem seja belo, e acolhedor, e desafiador. E preencha de puro milagre os vazios que antes podiam se imaginar árvores.

Árvores: porque se ramificam em impossíveis gestos. E porque dão frutos que são bons é quando amadurecem. E fazem convergir o jovem dos ramos em doçura e em destino.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O convite de casamento

Depois de achar aqui que não poderia escrever como eu e Demis nos conhecemos, percebi que de alguma forma já tinha escrito. Nosso convite de casamento foi um cordel com nossa história (bom, pelo menos uma versão!), impresso em forma de livrinho mesmo, em papel colorido, com ilustrações e tudo.

Não poderia ter sido outro.

Cada “capítulo” ia em uma página, com uma ilustração (feita pela Mari Simas, arquiteta mais querida do Brasil e idealizadora do proprio cordel) na página do lado.

Olha o texto dele aí, ó:

Cordel-convite: A afortunada historia da brasileira e do cubano e como isso deu em casamento

ILHA
Vou lhes contar uma história
Que é difícil acreditá
Da brasileira e o cubano
Que atravessaram o mar

Motivação da travessia
Foi em nome de gostá
Naná inda nem sabia
O que tava pra encontrá

Quando saiu daqui pra ilha
Num vislumbrou o que ia sê
Andando por sem trilha
Deu de cara com Dedê

Três dias suficiente
Pro destino tecê
Com adeus de nunca mais
Voltariam a se vê?

APUNTALADOS
Dedê que num dormia
Vivia a caminhá
No empoeirado novo do dia
E na saudade de Naná

Ela nos dias de vida
Horas de se sempre sabê
Recebia coisa escrevida
E era do tal do Dedê

Antes todinha de dúvida
Resolveu o incerto encará
Dedê recebeu de visita
De novo na ilha Naná

Mais dias de conhecença
Puderam se agraciá
De rio, café e aliança
Que se iriam de novo encontrá

PASSAPORTE
Começaram então um trabalho
Longo de qualquer um cansá
O esforço era bom pois sabiam
Que era pra podê se juntá

Os amigos entraram na história
Pra mor de poder ajudá
Alê ajuntou com Auro
Pros mil papel assiná

Naná ansiava diário
A lonjura se aproximá
Chats evocou os santos
Pra visa de ouro apressá

Até que enfim, reluzente
O carimbo da permissão
Dedê abraçou sua gente
E partiu com dois coração

AVIÃO-PÁSSARO
Era seis, mas cabou sendo dez
Que o tempo quis escrever
Agosto foi o mês da vez
Desse encontro acontecê

Logo no continente
Dedê num pôde escolhê
Urgente corinthiano
E ele assim soube sê

Viagem num foi pra ele
Em nela fez novo crescê
Como convite de sol
Sua cidade enfim conhecê

No começo a idéiaseis mês
Num bastou pra vontade morrê
Dedê e Naná teve mais
É querê pra fazê

JANELA DE CASA
Aprendê a fazê feijão
E a casinha arrumá
Dividindo o mesmo colchão
No mesmo teto morá

Que Nana e Dedê decidiu
O vida-a-vida gozá
A saga que se cumpriu
E tende a continuá

De sempre pequeno em pequeno
O grande assim acontece
Amor é contraveneno
Amanhece também anoitece

No encontro de todo dia
Dificultoso aprendê
O junto que desafia
E inda mais qué crescê

CALENDÁRIO-DÚVIDA
E de tempo cismá em passá
Mais de ano correu
Eles num qué chegá
No quando o visto venceu

Em Dedê saudade aperta
Meple, sua gente, família
Sente janela aberta
De sonho a eterna Ilha

Mas o junto daquela Naná
No aconchego de cada uma noite
Convida mais a ficá
Fazê da saudadeponte

Os homens faz um dilema
Precisa papel pra ficá
Num é papel de poema
É o outro, o de casá

CASAMENTO
Mas casório também é poema
Se é feito de celebrá
União dos que sabe tá junto
Sem nem papel precisá

E nessa hora da história
Você virô personagem
É ontem, sempre e agora
Que recebe essa mensagem

Mesmo ausente no dito
É incluído da vida
De Naná e Dedê, no bonito
Que então a você convida

Preste bem atenção
Na página que vem depois
É hora da celebração
Da história daqueles dois!

NATALIA E DEMIS CONVIDAM PARA A CELEBRAÇÃO DE SEU CASAMENTO

Dia 07 de Fevereiro de 2009, às 20 horas, no...

E a cara:




segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Papai-papinha

Chega a hora em que papai pode alimentar Benjamín. Enfim. Não deve ser acaso que papinha se chame papinha. Papa. Papá.

Ele se mete na cozinha com um sorriso de orelha a orelha. Seleciona os ingredientes, encontra os temperos, cheira o resultado. Junto com a casa, porque o delicioso perfume que sai da cozinha encontra cada aresta de cada coisa daqui. Inventa combinações. Pensa nas vitaminas. Nos nutrientes. Na cor e no sabor. Faz uma planilha. Poética. (Sim, planilhas podem ser poéticas e a prova disso está reluzente, pendurada na nossa geladeira). Lê o livro das papinhas que nos foi queridamente emprestado. Ama a cada colherada.

E o agradecimento vem, muito mais que destas palavras, da deliciosa sujeirada que se forma no rosto do Benjamín, na roupa dele, na de quem o segura. E na cozinha toda, de onde vem afinal a papinha, como uma rima que agradece à palavra que a concedeu.


Lambuzeira gostosa...


Obrigado, papai!




sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A incrível esperteza da mãe-natureza

Atenção: as palavras abaixo podem conter, para não-pais, conteúdo escatológico forte.

Um dia desses, enquanto trocava o novo cocô do Benjamín, percebi outra vez a astúcia da natureza.

O cocô dele, além de cheirosinho, era molinho, em volume na maior parte das vezes cabível na fralda e de consistência contornável com algodão molhado. E mesmo com esse cocô fácil, nas primeiras semanas eu conseguia sujar nós dois de cocô e lambuzar toda a roupa limpinha e as perninhas de hipoglos.

Desde que ele começou a comer papinha salgada, o cocô mudou. Agora tem cheiros diversos e esquisitos, sai de montão, é pastoso e pegajoso, muito pegajoso. Se eu molho o algodão pra limpar, espalho mais ainda. E tenho que limpar várias vezes pra tirar toda aquela tonalidade amarelada que fica a bundinha do meu filho. Isso, somado à destreza crescente do rebento, torna a tarefa trivial de trocar a fralda um desafio sempre maior.

E foi espalhando cocô por todo canto que pensei quão inteligente é a natureza por fazer com que os bebês comecem a vida com um cocô nível 1 de dificuldade, que só aumenta de nível conforme aumenta a habilidade dos pais para enfrentá-lo.

E ali, segurando pra cima as perninhas do meu filho, continuei devaneando e lembrando que essa esperteza da natureza eu já tinha vislumbrado no adiantado da gravidez, quando acordava umas quatro ou cinco vezes por noite pra fazer xixi e sabia que aquilo era só um preparo para as madrugadas que estavam por vir.

Ou quando recebia meus exames de sangue todos anêmicos, porque a sábia natureza, agora mais séria, prevê sangramentos no parto e deixa mais diluído o sangue que pode ir embora.sem dizer tchau.

Ou quando alguém pega no colo meu filho e constata em voz alta que ele está pesado, e eu num sorriso mudo sei que a natureza e sua perspicácia foram ajeitando os músculos do meu braço de acordo com o tamanho do meu filho, de modo que ele, pra mim, não pese nunca (por enquanto, mães de mais velhos, eu sei).

Ou lembrando de todo aquele inchaço associado a olheiras e cabelos disformes que me constituía logo depois do nascimento do meu filho, que faziam coincidir a impossibilidade de sair de casa e a necessidade de evitar isso a todo custo, poupando, assim, a vizinhança de cenas deploráveis.

Seria possível continuar enumerando ad infinitum as provas da astúcia da natureza (que é mãe, afinal de contas), mas meu Benjamín já estava com o bumbum limpinho e cheiroso, vestido, e não ficaria parado em cima do trocador pra eu continuar devaneando nem que a vaca tossisse.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

A árvore de Benjamín

Benjamín,

Você tem uma árvore.

Na verdade, você tem todas as árvores do mundo, que gostar é provavelmente a melhor maneira de ter, e ter deve ser a pior maneira de gostar.*

Mas tem uma que é sua de um jeito diferente das outras.

É a árvore que pinta de cores possíveis o branco do teu quarto. Que você vê quando acorda ou quando vai dormir, e que faz sombra na sombra que te adormece.

É a árvore que guarda nós dois, pairando, enquanto você mama.

Assim: acaso e saber são a raiz. No tronco, poesia e palavra. Nas tuas duas línguas, tão misturadas quanto os tons. Dos ramos se exerce a folhagem colorida por trás de onde se escondem outros segredos. Oceano. Etéreo. Jornada. Silêncio. Escondidos sussurrados por entre as cores. Outros segredos mais. E os muitos que você colocará ainda, pendurados nos galhos todos. Falados, gritados, escritos, silenciados.

Eu e o Papo falamos com você também através dela. Como naquela música**: hablar como un árbol con mi sombra hacia ti.


 Nos primeiros dias de vida...

 ...primeiras semanas...

...e alguns meses!


*José Saramago, O conto da ilha desconhecida
** Silvio Rodriguez, De la ausencia y de ti

(A árvore foi grafitada pelo querido Ota)


domingo, 3 de outubro de 2010

Relato de viagem - parte III: grávida em Barcelona

E então, depois de uma estadia espinhosa em Paris consolada por outra no aconchego da irmã em Rotterdam, era hora de seguir viagem outra vez. Só que Barcelona, o destino escolhido com alegria naquele remoto dia em que comprei a passagem (e ainda não sabia que estava grávida), ao invés daquele cidade colorida e festeira que eu sempre tinha querido conhecer, havia se transformado numa gigante interrogação. Eu não tinha nem onde ficar nem conhecia ninguém que fosse próximo. E de interrogações, já bastavam as da própria gravidez.

Tentei mudar o itinerário para passar todos os dias que restavam da viagem com minha irmã, mas a taxa era tão alta que não valia a pena. Juntei, então, o que consegui encontrar de coragem e fui, tendo reservado antes um albergue que parecia perto do aeroporto onde eu chegaria.

Pausa para contar brevemente do dia que passei em Bruxelas com Verinha, regado a boa conversa e abraço daqueles. Parecia que estar em casa (ela) fora de casa (e para isso são os amigos) tornava a sua visão ainda mais familiar, querida e necessária. Foi Verinha quem me acompanhou ao aeroporto num trajeto emocionante de quase perder o vôo. E agora vejo: é muito bom ter de quem se despedir. Obrigada, Verinha, pelo dia e pelo abraço.

À noite do dia em que saí de Rotterdam, depois de passar por Bruxelas, cheguei em Barcelona. Com medo e encolhida. Querendo cuidar da minha barriga e nada mais.

Peguei um taxi pro albergue que havia reservado, mas a reserva havia sido completamente desconsiderada e o amável e delicado administrador daquela espelunca casa me enxotou pro outro albergue deles em plena Rambla, em plena noite, eu, a barriga e a mochila, a pé. Um americano simpático havia sido enxotado também, e fomos juntos, eu falando amenidades pra num cair no berreiro, ele se oferecendo pra levar minha mochila, o que teria aceitado se a dele já não fosse maior que ele próprio.

Escrevi, na manhã seguinte: A pior noite da história. Barulho dentro do quarto, barulho da rua, calor, cama ruim, pessoas entrando e saindo, gente roncando, caminhões passando lá fora, gente gritando aqui e lá... Queria chorar e não tinha onde pudesse estar SOZINHA. Decidi ir prum hotel. Hoje, acabada, meio zumbi andando pelas ruas (devo ter dormido no máximo, com muito otimismo, umas duas horas)...

Esse tipo de perrengue, que em outras circunstâncias seria normal, não combina nada com gravidez. Nada. Muito menos com quase três meses, e muito menos sozinha. No dia seguinte, chegando ao hotel, me esparramei na cama e fiquei ali, curtindo o conforto, o silêncio, o banho. Curtindo a barriga que despontava. Sentindo o tanto de saudade, companheira fiel.

Poucos dias depois, porque boa companhia era necessária e porque meu orçamento não era compatível com ficar todos os dias que faltavam no hotel, fui recebida na casa de um amigo brasileiro da minha irmã, o Alex Kblo, que morava com o Tito e duas lituanas, e recebia em casa, além de mim, o Arthur. E a partir daí, em convivendo com esse povo muito acolhedor, a viagem foi ficando mais leve, e Barcelona pode ser a lindeza e a delícia que é. Claro, meu ritmo era muito diferente dos outros da casa. Eu não agüentava sair à noite sempre, acordava cedo pra comprar pão, ia à praia de manhã enquanto os outros dormiam. (Foi em Barceloneta que Benjamin entrou na água do mar pela primeira vez).

Em uma semana volto, que delícia (eu contava os dias desde Paris), e agora tudo ficou mais tranqüilo na companhia dessas pessoas, aqui virou delícia também e a saudade não é coisa fixa, é coisa como vento, vem e passa, ou como nuvem que muda de formato toda hora... Muito obrigada, Kblo, pela companhia, pela casa, pela acolhida; muito obrigada, Tito, pela música (até hoje escuto aquela Ciranda*), pelas conversas, pelo feijão; muito obrigada, Arthur, pelos papos e caminhares!

E, sabe, fomos uma noite, Kblo, eu e as lituanas, num desses lugarezinhos meio botecos, agora não lembro o nome, comer tapas, e ser esbarrada de leve pelas pessoas me foi extremamente alegre. Como é bom, depois da frieza da França e Holanda, poder encostar de novo nas pessoas...

Mas mesmo sendo muito bom estar em Barcelona, a melhor parte da viagem não foi ali. Nem na Holanda, e muito menos na França.

A melhor parte da viagem, eu não tenho nenhuma dúvida, foi no Brasil.

Foi a volta. Foi abraçar e cheirar e olhar o Demis no aeroporto. Foi chegar na nossa casa, felizes, eu e Benjamin crescendo na minha barriga, aliviados de estar enfim ali, e sabendo que, tão cedo, nós três não nos separamos.



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