quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Relato difícil de uma viagem difícil – parte I

Em agosto do ano passado decidi que queria viajar sozinha, sem marido. Na verdade, decidi o que as possibilidades me ofereciam: ele não podia tirar férias, eu estava mais que precisada delas e achei que seria bom sentir aquelas saudades gostosas dele. Um grande amigo estava em Paris, minha irmã em Rotterdam e eu cheia de vontade de voltar a pisar terras do velho mundo, já que desde a primeira vez em Cuba, como contei aqui, não consegui mais mudar de rumo. Então corajosamente inventei meu roteiro, comprei a passagem e já estava compondo cenas que mesclavam Natalia e o rio Sena, Natalia e o porto de Rotterdam e Natalia e a casa Battló, quando essas e todas as outras cenas que eu tinha imaginado não só pra viagem, mas pra vida, foram, uma semana depois, cuidadosamente chacoalhadas pela notícia repentina e surpreendente da minha gravidez.

Pausa.

Dias tumultuados: o novo da vida pra absorver, o corpo pra entender, cada momento pra reconsiderar e tantas outras melodias.

E a viagem pra decidir. Será? Uma coisa é ir mochilar na zoropa livre, leve e solta. Outra completamente diferente é levar junto uma criatura que se inicia ali debaixo do seu umbigo. E que te diz que mochila é muito peso pra carregar. E que talvez não seja hora de sair de perto de casa. Ou de perto do marido.

Mas ali no meio do tumulto, tendo que tomar uma decisão, escolhi viajar. Mesmo não sabendo que cenas compor pra colorir o imaginado de antes da viagem. Mesmo não sabendo o que levar na mala. Mesmo não sabendo como seriam as camas onde eu iria dormir.

Nunca tive problema nenhum em viajar sozinha, pelo contrário. Gosto muito. É poder viajar inteiro, estar amplo no desconhecido, aberto. Viajo sozinha pra outros países e pra sala de cinema aqui do lado. Mas grávida – aí a história era outra.

Hoje vejo o tamanho da loucura. Convencida por mim mesma (quando é que você vai poder fazer uma viagem dessas de novo?), de repente lá estava eu, com dois meses de gestação, rumo ao aeroporto.

Escrevi:
Nesta sala de embarque lotada, o estranhamento do enfim. Sensação de esguelha de ter esquecido alguma coisa. Relembro, sabendo que não esqueci nada: carrego em mim o essencial. Sou, eu mesma, casa. E gesto futuro. Parece que até aí eu ainda tava me convencendo a ir.

E pra logo ver como ia ser, viajar de avião grávida sem que ninguém soubesse disso foi mais duro que a encomenda. Começando pelas inúmeras vezes no banheiro. Passando pelo inchaço nas pernas. Pela vontade de alguma cumplicidade. E terminando num cansaço descomunal.

Cheguei invadida de cansaço, inundada de mim mesma, pernas inchadas, voz sumida. Os passos pesavam a acontecer, e dormir em plena tarde foi o que me fez poder chegar.

Cheguei em Paris, fui pra casa daquele amigo. Tentando sorrir, achar bom estar ali, falar nossa que máximo estou em paris. Mas o sono, o cansaço e a vontade do colo do Demis me arrancavam essas palavras.

E fui preenchendo os dias como me era possível. Toda a programação turística comum me teria dado enjôo, se eu tivesse tido enjôos na gravidez. Saía andando por aí, via um museu ou outro, mas aquilo não me tocava. Quase reconheci esquinas. Achei Paris excessivamente cheia. Que saco estar sempre rodeada de turistas. Os turistas são um saco, e ser turista é um saco. Turista é muito diferente de estrangeiro. Estrangeiro é outro. Turista carrega o mesmo, busca o mesmo e vê o mesmo. Sem se dar conta, o turista destrói o lugar sem ao menos haver estado ali. Eu não tinha vontade de conversar com ninguém. Sabe aquela curiosidade viajante de perguntar de onde vem, pra onde vai? Desviou de mim. Eu não imaginava uma conversa em que eu pudesse não dizer que estava grávida. E simplesmente não queria contar o que me era tão precioso prum outro qualquer.

(Parêntesis só pra dizer que já tinha estado em paris e tinha amado. Fecha parêntesis.)

É impressionante o pedido do meu corpo por recolhimento. Pedido sem palavras e que inclui também elas próprias. Um pedido mudo de silêncio. A cada dia queria estar menos ali. Que o tempo passasse rápido. Sentia vontade ardida de tocar no Demis. De dormir na minha cama, tomar banho nas minhas águas. Poder me concentrar inteira no meu sono e na minha barriga.

Até que aconteceu algo terrível, que não sei bem como contar, mas poderia descrever assim: eu e meu amigo que me hospedava começamos a falar línguas diferentes. Incompreensíveis uma à outra. Impossíveis, em se tratando de nós dois (éramos realmente muito próximos antes disso). E a única maneira possível dessas línguas se tocarem era em forma de discórdia. Brigamos. E me vi completamente perdida em Paris, grávida, choro constante, sem ter canto.

(Não sei se esse meu amigo vai ler isso algum dia. Depois dessa viagem, não nos falamos mais. Foi duro, e rasgou nós dois. Éramos, então, pedra (eu) e pássaro (ele). Da concretude que eu vivia era impossível levantar vôo. Aqui, tento não fazer julgamentos. Mas sei que estávamos ambos certos e errados.)

Os dias passaram e minha estada de nove dias em Paris acabou.

Foi com um alívio enorme que sentei no trem que ia me levar a Rotterdam.

E como escrever disso foi infinitamente mais difícil do que eu pensava, o resto da viagem continuo depois.

11 comentários:

Dmis disse...

del otro lado, habia nacido la soledad de quien no se sabe solo... nada estaba resultando en una verdadera felicidad (eso de mi lado)... recuerdo que antes de viajar, aun indecisa, yo casi rogaba y a veces, imponia tu partida... era el espacio que necesita (y defendia) para no enfrentarme a la agonia... sabes, TODO LO DURO que fue...

Anônimo disse...

de alguma forma, minha gravidez e maternidade me afastaram de algumas pessoas queridas (e me aproximaram de outras.)
acho que são ciclos, sei lá.
vc escreve bonito, natalia.
beijo

Ferna disse...

Natália, que coisa louca a escrita. Consegui ser a Natália, personagem desse conto, e pela primeira vez foi difícil estar em Paris.

No pouco tempo que estive grávida, tive um apego incrível, pela minha casa, minhas coisinhas e de estar ao máximo com meu marido.
Acho que é um momento de fazer ninho. Ao mesmo tempo que se sabe que, ao menos durante algum tempo, vai ser impossível viajar sozinha, leve, livre e solta.
Mas outra viagem, bem maior, já começou. E outras paisagens infinitas já estão sendo compostas.

quero continuar essa viagem.

beijos

Paloma Varón disse...

Nossa, Natália, que viagem difícil. E ainda o rompimento com o seu amigo.
Acho que alguns amigos se afstam mesmo durante a gravidez e quando nods tornamos mães. Somos meio monotemáticas, né?
Quando engravidei da Ciça, tinha acabado de passar num mestrado em Paris, com bolsa. Meu marido ia também, mas não me senti segura para estar grávida e ser estudante em outro país. Viajar grávida é ótimo a partir das 18, 20 semanas.
Beijos

Dmis disse...

Contigo... Fito y Sabina...

http://www.youtube.com/watch?v=-CUXP7L6rSA&feature=related

y eso es todo (o casi todo!)

Anônimo disse...

Olá,

Lindo texto Natália.
Que decisão complicada, deve ser difícil ficar longe da pessoa que compartilha e ao mesmo tempo é co-responsável por esse momento de tamanha revira volta nas expectativas sobre o que será a vida daí prá frente...
Mas, sabe que indo a Paris, no meio de toda aquela quantidade de turistas, me senti um pouco mal também, mesmo não estando grávida e estando acompanhada. Saí de lá com a sensação de que os pontos turísticos mais frequentados de Paris, parecem shopping em véspera de Natal, terrível... (Sorte que tem alguns lugares que a turistada não aparece muito, daí dá para curtir a cidade com mais paz.)

bjos,
Fabi (faby.rod@bol.com.br)

Anne disse...

Natalia, você foi no Super Duper e deu risadas e eu vim aqui e me emocionei! Seus textos são liiindos! E o Benja tb! bjos

Carol disse...

é díficil falar das nossas histórias as vezes, né? sozinha vc já não estava, rs... =*

Dani, a Mãe da Flor disse...

É impressionante como a maternidade, desde o ventre, muda a gente...
Bjs.

Marina disse...

Que bonito texto... me fez lembrar da minha viagem de volta para o Brasil com meus dois meses de gravidez também. Se aparecer um texto sobre esse dia no meu blog pode saber de onde veio a inspiração.

Sarah disse...

Com certeza com a maternidade descobrimos outra pessoa dentro de nós. Muda nosso centro, nosso foco, nossos pensamentos se voltam todos para a gravidez e o bebê. Uma pena o rompimento com seu amigo... Tô curiosa para ler o resto da viagem.
bjos!

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