segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Sem anos de perdão

Misterioso, o escrever. Sempre. Começa de uma ideia brotada e segue caminhos imprevisíveis, enviesados, tortos. Querendo se chegar ali, de repente as palavras resolvem tomar rumos outros e nos levam pra lá, fluindo num formar-se de linhas como se puxadas de um carretel. Um carretel invisível e incontrolável. Quem nunca viveu o perder um texto e o tentar reescrevê-lo, sendo surpreendido por um resultado completamente diferente daquele que tinha sido escrito instantes antes? Não, as palavras não são nossas. As palavras são delas mesmas. E por isso não podem ser roubadas.

Tenho a impressão, quando escrevo, que são as palavras que me escolhem, e não o contrário. E isso não é uma espera passiva. É um gesto dificílimo de recolhimento. Em me recolhendo, recolho as palavras que se oferecem a mim. E o texto sai, tecido. Como ele quis. Quando ele quis, porque às vezes não sai. Tenho guardados aqui no computador alguns impublicáveis como exemplo. Mas não mostro por serem mesmo impublicáveis.

E aquela ideia brotada onde na maioria das vezes tudo começa, ela tem vários jeitos de brotar. Às vezes vem do nada, às vezes de uma cena. De uma lembrança. Um mistério. Às vezes, de outro texto. E isso não tem nada a ver com plágio. Isso pode se chamar inspiração, ou intertextualidade, ou qualquer outro nome que caiba. E não retira nada do texto que foi fonte, pelo contrário. Acrescenta outros sentidos, partindo daquilo que já estava pronto. Aí, pode até acontecer um prolongamento tal que dê vida nova ao que já estava inerte.

Mas quem copia não está fazendo nada disso. Seria mais ou menos como arrancar uma flor da terra: ela não pode ser replantada num lugar que não a sabe receber. Ela morre sem o que é sua raiz. E raiz, em se tratando das palavras escritas, é o fazer parte do texto, do contexto, é ter existência por ter sentido. É o ter sido recolhida.

Lembrei agora um assalto que sofri. Assalto de verdade, com arma e tudo. Um objeto foi roubado, dentre as coisas que foram roubadas. Ele valia pouco dinheiro, mas tinha outro valor muito grande. Tinha sido um presente meu pro Demis. Eu fiquei imaginando o objeto na vida das mãos que o levaram, e ele não tinha nenhum sentido possível nelas. A pessoa que o tinha agora não podia chegar nem perto do tanto de significado que aquilo tinha pra gente. Um desperdício do objeto.

Assim acontece com textos roubados. Roubados, e não apropriados, tornados próprios. São coisas muito diferentes. O texto roubado morre no novo lugar, não encaixa, não enraíza. O texto (ou ideia) apropriado ganha outras ramificações, vive noutras paragens, se multiplica pelos olhos que o colheram. Na história da literatura houve muitos textos apropriados. Aliás, a literatura é a história da conversa entre muitos textos. E quando essa conversa acontece, ela pode vir escondida por trás das palavras. Não precisa citar nem nada, isso até tiraria a graça de uma reverência silenciosa que não se mostraria a um leitor menos atento.

No caso das escritas internáuticas, a coisa é um pouco diferente. Porque o leitor dificilmente tem como saber do outro lado da conversa, já que aqui se escreve pequeno, e aos milhões. E reverência sem considerar o que é reverenciado se aproxima da inveja.

O jeito internético de se manter na reverência é dizer de onde veio. Exatamente como o intérprete de uma música diz quem a fez, para então poder interpretar como quem voa. Vide Elis Regina, que não roubou nada de ninguém e deu a muita música vida que nem os autores imaginavam pudesse sair do que eles tinham feito. Tivesse ela roubado, não teria tido chão de onde tomar impulso para o voo.

Dizer de onde veio, além de preservar o que é possível da conversa que dá vida aos textos, é uma maneira de trazer junto a história. Começando pela história de quem está escrevendo, que conta ter passado por ali onde bebeu da água que derrama agora em voz própria. E passando pela história do que foi trazido nessa visita – história-raiz, que, contextualizando, deixa que o texto enxertado viva.

Ladrões de palavras. As palavras, quando palavras, se roubadas desintegram. Vocês se desfazem junto delas. E ficam com as mãos cheias de impossibilidade: de dar sua voz ao mundo; de colher junto; ou de silenciar.

Ladrão que rouba palavra rouba o impossível. As palavras não se roubam. Elas se dão. E por isso ladrão que rouba palavra fica sem anos de perdão.

14 comentários:

Camila disse...

Assino embaixo! Excelente o seu post, adorei!!
Super beijo,
Camila
http://mamaetaocupada.blogspot.com/

Anne disse...

ARRASOU! Ninguém melhor que a "cyber-mom-papiza-das-palavras" para falar delas, seu uso, seu furto... Seus textos são o máximo, melhor impossível. Inspiram, emprestam, doam, conteúdo e vontade para a gente, mas continuam sendo seus! Verdadeiras sementinhas que brotam na gente a vontade de pensar e achar nossas próprias palavras... bjooooo
Anne
mammisuperduper.blogspot.com

Pati disse...

Tá todo mundo escrevendo muito bem neste manifesto, e vc foi destaque para mim!
Lindo texto!
Triste este lance das cópias, é impossível controlar e até descobrir, mas é coisa das mais feias que tem!
bjs

Unknown disse...

Lindo Natália!Seu texto é inspirador! Parabéns!

Um beijo na linda família!

Ivana

Maria Thereza Pinel disse...

Muito bonito o texto!
Primeira vez que passo por aqui, e a impressão que tive é que você tem um toque de romance e poesia nos seus posts. Gosto disso!

Estou seguindo!
Beijo! Parabéns!

Sarah disse...

Natalia, todas nós que aderimos à blogagem coletiva hoje falamos mais ou menos a mesma coisa em nossos posts, umas se atendo mais a um ponto, outras a outro... mas ninguém consegue passar as ideias da maneira poética e delicada que vc faz. Lindo texto, como sempre. Parabéns.

Renata disse...

Vc escreve tãããão bem... adore ler seus textos e hoje ainda mais. Lindo e preciso.

Eu precisava....rs.


Beijao!

Thalita Santos disse...

Ei Natalia! Pois é... a males que vem para bens, rss! Adorei seu blog e seu estilo poético de escrever! Estou te seguindo e daqui a pouco volto para ler mais! Um abraço!

Unknown disse...

Obrigada Natália pela passadinha lá no blog! Estarei sempre dando uma passadinha por aqui!

Bjos,
Ivana

Ferna disse...

Ai Natália! Acho que até se tu escreveres uma carta de reclamação pro vizinho barulhento vai ser poesia...
Êta dom, hein? Adoro.

Falou lindo e disse tudo!

beijos

Gabi disse...

e' minha irma....

Que orguuuuuulho!

(e meu sobrinho, e meu cunhadiinho....)

:)

Graziela disse...

Obrigada pela visita e pelo comentario.
Nao conhecia seu blog e estou encantada.
Esse post sobre as palavras tem um tom tao romantico, tao literal, muito verdadeiro e tao seu Natalia, que se alguem tiver a cara de pau de copiar... e´muita cara de pau viu!
Voltarei com certeza, parabens pelo texto!
Abracos e otima semana.
Gra

Dani, a Mãe da Flor disse...

Lindo, lindo, lindo...
Como tudo que vc escreve vira poesia!!
Amo ler "você"!!!
Vc já pensou em escrever um livro?
Se fizer isso me avise, quero comprar e dar de presentesssss!!!
Leitura suave e agradável.. sempre!!
Bjs!!

Val disse...

Nunca vou cansar de dizer que seus textos são únicos, "incopiáveis"... Vc falou com maestria sobre um assunto que talvez, se tornasse chato e tedioso, numa blogagem coletiva. Parabéns!

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